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Preciosíssimo Sangue de Jesus: Se bastava uma só gota, por que a Cruz?

Aparentemente, Jesus não precisaria ter se submetido a tão cruel expurgo, uma vez que, segundo o tradicional canto Adoro te devote, de Santo Tomás de Aquino, uma única gota de seu sangue bastava para “salvar todo o mundo e apagar todo pecado”. Afinal de contas, Cristo é Deus e, portanto, nenhuma palavra lhe é impossível (cf. Lc 1, 37, Vulg.: quia non erit impossibile apud Deum omne verbum). Mas o Senhor Jesus, recorda-nos Santo Tomás, quis assim mesmo fazer-se bondoso pelicano para lavar a nossa imundície com a pureza de todo o seu sangue.

Essa estrofe do canto do Doutor Angélico, composto especialmente para a solenidade de Corpus Christi, dá-nos já uma primeira impressão sobre os mistérios da Via Crucis. Santo Tomás compara Jesus a um pelicano, porque, no dito popular, essa ave daria a sua própria carne como alimento a seus filhotes. Do mesmo modo, Jesus vem em socorro de nosso fracasso para nos alimentar com a carne e o sangue da salvação: Pie pellicane, Iesu Domine / me immundum munda tuo sanguine — “Senhor Jesus, bondoso pelicano / Lava-me, eu que sou imundo, em teu sangue”.

Quanto à afirmação seguinte do hino, que é o nosso foco — cuius una stilla salvum facere totum mundum quit ab omni scelere —, cabe perguntar por que Jesus decidiu entregar-se, então, no sacrifício da Cruz e submeter-se a uma morte extremamente dolorosa, se do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor bastaria uma só gota para redimir a humanidade inteira.

A esse respeito, o padre Reginald Garrigou-Lagrange [1] recorda que Santo Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica (III 46), apresenta de forma ascendente três razões de conveniência para a crucificação de Cristo: i) era conveniente aos humanos; ii) era conveniente ao próprio Cristo; e, finalmente, iii) era conveniente a Deus.

1. Jesus morreu na cruz porque os homens precisavam saber do seu amor. — Em primeiro lugar, a Paixão de Cristo seria necessária porque, por meio dela, podemos compreender, como diz São Paulo, “qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor de Deus” (Ef 3, 18). Desse modo, somos constrangidos por esse amor a dar uma resposta a Deus.

Para confirmar essa opinião, Santo Tomás cita as palavras de Cristo, no Evangelho de São João: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13). Pois, como diz São Gregório Magno, a prova do amor é o próprio ato de amor e, quanto mais sacrificado este o for, maior será sua contundência. Jesus morreu por nós, por nossos pecados, ou seja, “quando éramos ainda inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho” (Rm 5, 10).

Além disso, era conveniente que houvesse uma morte pública de Jesus, com o seu suplício no alto da cruz, para que todos os homens tivessem notícia desse acontecimento e o amassem de volta, de modo a cumprir o que havia sido predito pelo próprio Senhor: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo 12, 32).

A cruz, por si mesma, enquanto crueza física, é algo repulsivo. As cenas chocantes do filme da Paixão de Cristo, por exemplo, levaram muitos a se perguntarem sobre a necessidade de todo aquele horror. Afinal, a crueldade deve nos causar uma repulsa natural. Mas a cruz de Cristo nos atrai segundo o olhar da fé; nela não vemos apenas um cadáver, mas o corpo de Deus que se entregou até a última gota pela salvação do gênero humano (propter nos). Pela fé, nós enxergamos o Amor que não se vê fisicamente. Portanto, é a causa daquele sacrifício que, sob os olhos da fé, nos atrai para Deus.

A cruz revela, por sua vez, o amor infinito com o qual fomos amados, um amor impossível de ser igualado. Na verdade, Cristo fez-nos perceber qual é a dignidade do ser humano, pois Deus enviou seu Filho unigênito para resgatá-la, morrendo numa cruz.

2. Jesus morreu na cruz porque esse era o maior apostolado. — Diante da dignidade eminente de Jesus, Ele então não poderia realizar um sacrifício menos digno, menos condizente com sua própria natureza. Nos sacrifícios mais simples, os chamados sacrifícios pacíficos, os sacerdotes ofereciam apenas partes da vítima. Os seus demais membros, porém, eram consumidos como um ato de comunhão com Deus. Jesus, em vez disso, caminhou para um grande holocausto, um grande ato de amor. O seu corpo foi inteiramente imolado no fogo do altar. Ele, o Sumo sacerdote, não guardou nada para si, mas deu-se totalmente, sem qualquer negociação.

Tal ato de amor deve nos fazer entender que a nossa entrega a Deus tem de ser total. Não pode haver um apego, uma riqueza como a do jovem rico, que nos prende às coisas deste mundo. Neste sentido, o padre Garrigou-Lagrange [2] nos recorda que existem três tipos de apostolado: o da doutrina, o da oração e o do sacrifício. E isso está na ordem da dignidade. Na cruz, Jesus salvou mais pessoas do que pregando na montanha ou rezando no horto. De igual modo, nós, católicos, como família de Deus, precisamos pregar a doutrina, rezar uns pelos outros e, sobretudo, oferecer nossos sofrimentos uns pelos outros.

Muitas vezes desprezamos os pequenos contratempos, os desgostos da vida corrente, como se eles não tivessem um valor meritório para a salvação das almas ou fossem, pior ainda, obras do maligno. Todavia, essas pequenas cruzes servem grandemente à nossa santificação: o cansaço, a dor física, uma doença, um problema financeiro ou familiar, enfim, todas essas dificuldades são grandes ocasiões de fazermos atos de amor a Deus, pela conversão dos pecadores e salvação dos homens. Mais ainda: por essas cruzes, nós nos unimos intimamente a Deus.

Jesus, que é imaculado, abraçou a cruz para sofrer as consequências dos pecados mortais. Ele experimentou a tristeza de todos os pecados da história. Diante da sua enorme santidade, aliás, os pecadores contumazes não poderiam sentir outra coisa senão ódio. A sua Paixão, portanto, resultou como perseguição dos homens que tanto o odiaram. Não cabe a nós, com efeito, esperar outra coisa desta vida, a não ser as contrariedades e as cruzes, principalmente no trabalho apostólico. Uma evangelização que se ilude com os aplausos do mundo está fadada ao fracasso. “Se o mundo vos odeia, sabei que me odiou a mim antes que a vós” (Jo 15, 18).

3. Jesus morreu na cruz porque essa era a melhor forma de o Pai mostrar o amor pelo Filho. — Afirmar que a crucificação de Jesus é o maior ato de amor que o Pai poderia fazer pelo Filho parece um contrassenso. A esse respeito, Santo Tomás de Aquino responde que, ao contrário do que se pensa, o Pai amou a Cristo “não somente mais que a todo o gênero humano, mas, mais que a toda a universalidade das criaturas. Pois, quis-lhe maior bem e deu-lhe um nome superior a qualquer outro nome, como a verdadeiro Deus” (STh I 20, 4 c.). Pela obediência de Jesus, Ele recebeu do Pai maior glória.

Esse amor de Deus torna-se mais claro a partir de uma visão existencial. Deus mostra uma predileção especial por aqueles aos quais envia sofrimentos. Trata-se de uma eleição, pois Ele confere deveres importantes àqueles que mais ama e confia. Por isso, Deus Pai, ao colocar a Cruz e o caminho de sofrimento para Jesus, confiou-lhe, com isso, a missão mais difícil, que somente esse Filho, o mais amado e capacitado, poderia realizar. Jesus foi escolhido para salvar o gênero humano e conduzi-lo ao Céu. E esse Filho, tão virtuoso e tão santo, aceitou a missão com toda resiliência e abnegação.

O sacrifício de Jesus nos mostra, finalmente, que os nossos sofrimentos são também uma eleição divina. Deus nos elege para cooperarmos na obra da salvação, completando em nossa carne os sofrimentos da cruz de Cristo (cf. Cl 1, 24). E se nos conformamos a essa eleição, dando-lhe o obséquio da nossa vontade, não sofremos, como ressalta Garrigou-Lagrange, uma crueldade, porque nosso coração é movido pela mesma vontade do Pai [3].

Depois disso, podemos repetir como Jesus, antes do início da Paixão: “Pai, é chegada a hora. Glorifica teu Filho, para que teu Filho glorifique a ti” (Jo 17, 1).

Referências: Padre Paulo Ricardo

Reginald Garrigou-Lagrange, Christ the Savior: a commentary on the Third Part of St. Thomas’ Theological Summa, trad. ingl. de Dom Bede Rose, San Bernardino: Ex Fontibus Company, 2015, pp. 608-619.
Ibid., p. 612.
Ibid., p. 615.

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