O
livro do Gênesis diz que “Deus criou o ser humano à sua imagem" [1]. Antes
disso, o pecado já existia, não por natureza, mas pela má vontade dos anjos
decaídos, os demônios. Foram eles quem, por inveja, se aproximaram do primeiro
homem para tentá-lo. Até então, Deus o havia colocado em um jardim de benesses
[2], com múltiplas possibilidades de árvores e animais para comer e inúmeras
coisas para fazer, tendo proibido apenas uma coisa: “Podes comer de todas as
árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não deves
comer, porque, no dia em que dele comeres, com certeza morrerás" [3].
Por
medo da morte e pelo aviso divino, Adão e Eva não tinham comido da árvore, até
que o demônio lhes tentou, invertendo o apelo de Deus e transformando em
atrativo aquilo que era proibido: “De modo algum morrereis. Pelo contrário,
Deus sabe que, no dia em que comerdes da árvore, vossos olhos se abrirão, e
sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal" [4]. Seduzidos pelo
maligno, os primeiros pais pecaram e a desordem entrou na humanidade.
Para
este curso de Terapia das Doenças Espirituais, o relato do livro do Gênesis
sublinha um fato de notável importância: quando a serpente apresentou o fruto
da árvore à mulher, ela “viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente
para os olhos e desejável para obter conhecimento" [5]. Estas três
realidades – “comer", “atraente para os olhos" e “desejável para
obter conhecimento" – perpassam toda a história da humanidade: representam
a tendência do homem para o prazer, para possuir as coisas e para o poder, essa
última entendida como uma espécie de astúcia operativa.
São
João entendeu bem isso, quando escreveu que “tudo o que há no mundo – a
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a ostentação da riqueza
[a soberba da vida] – não vem do Pai, mas do mundo" [6]. E o próprio
Senhor, no deserto, foi tentado pelo demônio com essas três matérias [7].
Primeiro, Satanás propôs a Ele que transformasse pedras em pão, a fim de comer.
Depois, “mostrou-lhe, num relance, todos os reinos da terra" e prometeu
dar-Lhe tudo aquilo, se Se prostrasse diante dele. Por fim, tentou Jesus a
fazer uma demonstração de poder: “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo".
Nosso Senhor venceu as três tentações, mostrando ao homem que é possível, com a
Sua graça, vencer a carne, decaída pelo pecado original.
Mas,
que são essas três coisas que com razão se podem chamar de “raízes" do
pecado? Tratam-se de três libidos ( libidines, em latim). As duas primeiras são
chamadas por São João de “ἐπιθυμία" (lê-se: epithumía) – assim, há a “ἐπιθυμία
τῆς σαρκὸς", que é a concupiscência da carne, e a “ἐπιθυμία τῶν ὀφθαλμῶν",
que é a dos olhos –, pois estão radicadas na potência concupiscível do homem. A
terceira, por sua vez, está na potência irascível: é a “ἀλαζονεία τοῦ
βίου", a soberba da vida.
A
primeira, a libido amandi, é o apetite desordenado que “tem por objeto tudo o
que pode fisicamente sustentar o corpo seja para a conservação do indivíduo,
alimento, bebida etc., seja para a conservação da espécie, as coisas
venéreas" [8]. O objeto dessa concupiscência é tanto a gula quanto o sexo
desordenado, que é o vício da luxúria. É curioso que, na mesma época em que se
vê o fenômeno da anorexia, de meninas que morrem de fome porque não querem
comer, percebe-se uma humanidade que busca o prazer venéreo, mas não quer
assumir a responsabilidade dos filhos. As pessoas querem comer, mas não querem
engordar; querem fazer sexo, mas não querem estar abertas à vida.
A
segunda, a libido possidendi, “é concupiscência animal, e tem por objeto as
coisas que não se apresentam para a sustentação e o prazer da carne, mas que
agradam à imaginação [delectabilia secundum apprehensionem imaginationis] ou a
uma percepção semelhante, por exemplo, o dinheiro, o ornato das vestes, e
outras coisas deste gênero. É esta espécie de concupiscência que se chama de
concupiscência dos olhos" [9].
A
terceira é a libido dominandi. É a soberba fundamental de querer ser igual a
Deus, como fez Satanás. Enraizada no irascível, essa libido deseja o bem
enquanto algo árduo: “Quanto ao apetite desordenado do bem difícil, pertence à
soberba da vida, sendo que a soberba é o apetite desordenado da excelência
[appetitus inordinatus excellentiae]" [10].
É
para combater essas três causas do pecado que se praticam as três obras
quaresmais: o jejum, a esmola e a oração; e também os três votos evangélicos: a
castidade, a pobreza e a obediência. Também aqui se identificam os nossos
relacionamentos com o outro, com as coisas e conosco mesmos. Se abusamos de
outra pessoa, usando-a como objeto para obter prazer, estamos cedendo à
concupiscência da carne; se idolatramos as coisas, pensando estar nelas a nossa
felicidade, cedemos à concupiscência dos olhos; e se fazemos de nós mesmos
deus, estamos na soberba da vida.
Deus
criou o homem para que ele participasse de Sua divindade, mas ele deveria sê-lo
pela graça, não por suas próprias forças. Quando Eva “se apega ciosamente ao
ser igual a Deus", ela rouba, com “ἁρπαγμὸς" (lê-se: harpagmós): as
suas mãos se fecham para pegar para si. As mãos de Cristo são o contrário das
mãos de Eva: elas se abrem para dar. Enquanto Eva quis, Cristo tudo entregou.
Enquanto as mãos de Eva se voltam ao lenho para pegar, as de Cristo se deixam
pregar ao lenho da Cruz para dar. Da primeira árvore nos vêm a desgraça e a
morte; da segunda, a graça e a vida, a nossa salvação.
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